quarta-feira, 13 de abril de 2011

O COSMOPOLITISMO ESTÓICO E OS DIREITOS HUMANOS*

I.

O fundador do estoicismo foi Zenão de Cício (336 a.C. – 264 a. C.), que nasceu em Cício, na ilha de Chipre, mudando-se para Atenas por volta de 312 ou 311 a. C.. Seus discípulos, formadores da escola estóica, ficaram conhecidos como estóicos por causa do lugar onde se reuniam, Stoa Poikile.

Segundo a escola fundada por Zenão, para se alcançar a felicidade, que é o próprio sentido da vida, é necessário ser cosmopolita, ou seja, cidadão do mundo, o que significa ultrapassar os limites geopolíticos da existência. O conceito de cosmopolitismo nascente com os estóicos surge da necessidade de troca de experiências entre os povos, onde o individuo pertencente a um povo deveria sentir-se em casa em qualquer parte do mundo, disposto a aprender e vivenciar novas culturas, além de transmitir aspectos da cultura do seu lugar de origem, sem sofrer represaria por ser estrangeiro.

O presente trabalho tem por objetivo mostrar as influências dessa escola de pensamento tão importante para a História da Filosofia nos atuais debates sobre Direitos Humanos no âmbito das relações internacionais, especificamente na questão da imigração.

II.

Falar de direitos humanos é falar de toda uma história de reivindicações e conquistas dos povos das mais diversas nacionalidades. O principal exemplo disso é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que traz na sua essência o objetivo de mediar as relações entre povos e nações de maneira que não haja restrição para o seu cumprimento, como diz seu próprio texto, em Preâmbulo, que proclama:

“como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.” 1

Podemos iniciar a nossa reflexão chamando a atenção para três importantes palavras contidas na citação acima: ensino, educação e liberdades. Ambas as palavras apontam para questões no âmbito da cultura, ponto central para a nossa reflexão, pois dizem respeito, respectivamente, à capacidade de aprendermos e ensinarmos; à capacidade de institucionalizarmos e aprimorarmos os conhecimentos e à capacidade de respeitarmos a diversidade de conhecimentos e práticas e a livre vontade ou necessidade de vivenciá-los.

Aqui, a princípio, estamos falando de capacidades das quais todos os homens são dotados no campo das possibilidades. Porém, a questão é: como fazer com que essas capacidades sejam efetivadas na vida real, no cotidiano, tendo em vista o bem comum?

Para os antigos estóicos, o conhecimento e a sua troca recíproca são fundamentais para o exercício da razão. Para eles a virtude, seu maior bem, consiste em fazer uso da razão de modo que dela resulte numa ação transformadora que perpasse os homens, na sua individualidade e interioridade, e a totalidade da Natureza da qual somos uma importante parte.

Esse exercício teria como conseqüência o nascimento de um novo homem, enquanto gênero, que acredite e siga uma nova physis, não apenas por acaso, mas por entendê-la enquanto harmonia orgânica.

“Diz Zenão: ...devemos considerar todos os homens como ‘démotas’ e cidadãos, e que o modo de vida seja uno e a ordem uma, como um rebanho que numa pastagem se nutre em conjunto, segundo uma mesma lei...”  2

Ou seja, é necessário fundar uma consciência capaz de pensar o homem não mais apenas como uma parte do mundo ou do cosmo, mas como microcosmo dentro do cosmo.

Estes pensamentos salientam que, ao dispor uma natureza uma, necessária, legal, lógica, divina, nobre, é indicado que tudo o que não aderir a tal modo de ser será reconhecido como lhe sendo contrário. É o caso das cidades históricas e da noção de areté (virtude), presente no éthos (morada / ética) da época, bem como da realização do poder político desvinculado da lei natural que a todos iguala. 3  

III.

E nos dias atuais, como o conceito de cosmopolitismo pode ser aplicado?

O termo cosmopolitismo, que nasce com os estóicos, tem o seu sentido aprimorado ao longo da história de acordo com os diferentes contextos. Se para os estóicos a idéia remonta a figura de um cidadão do mundo, capaz de aprender e ensinar aspectos da cultura preservando suas origens e respeitando a diversidade das várias realidades; para a modernidade, mais especificamente para Kant, o termo aponta para uma organização política da sociedade com vistas à uma República Mundial, justa e juridicamente válida, que tem como principal tarefa garantir o cumprimento dos direitos fundamentais das pessoas e dos estados nacionais. 

Na contemporaneidade, um filósofo que trabalha essa temática é o alemão Otfried Höffe, que traz na sua obra Democracia no Mundo de Hoje algumas reflexões, a partir da idéia kantiana de cosmopolitismo. Para ele a construção de uma sociedade cosmopolita inicia-se na criação e legitimação de instituições de atuação internacional que sejam justas e caminhem progressivamente para uma organização mundial genuinamente democrática.

Atualmente, no que diz respeito aos DH, um tema bastante pautado é a questão dos imigrantes. Imigrar é entrar em um país que não é o seu de origem com o intuito de estabelecer moradia, permanente ou temporária.

Com o processo de globalização e, conseqüentemente, maior acentuação das desigualdades existentes entre os diversos países, o número de pessoas, principalmente oriundas das regiões mais pobres, que procuram melhoria de vida em outros países aumentou consideravelmente.

Falar de cosmopolitismo, ao meu ver, nesse contexto, é falar de respeito ao direito de ir e vir que cada individuo deve ter, independente do território em que escolha viver, assim como do direito que cada país tem de ter sua legislação respeitada e cumprida.

Hoje podemos ver várias questões em torno do tema da imigração como campanhas de direito a voto, licença para residência, trabalho escravo ou mal remunerado, etc. Além das legislações que controlam a entrada e saída de estrangeiros, onde muitas vezes os mesmos são tratados como se fossem criminosos, passando por vários constrangimentos e até mesmo sofrendo violências.

Esta ainda não é uma questão fácil de se solucionar, mas caminha para isso. E mais do que uma simples questão de Direito, é uma questão de sobrevivência da humanidade, pois se não rompermos as barreiras, que normalmente são ditadas pela lógica do mercado, não avançaremos, de fato, nas trocas culturais para formar uma sociedade mais consciente e igualitária.

- - -

Notas:

1 - Declaração Universal dos Direitos Humanos. Preâmbulo. ONU – 1948. (in: http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php)
2, 3 - GAZOLLA, Raquel. O Ofício do Filósofo Estóico. São Paulo: Edições Loyola, 1999. Cap. 2, p. 51

- - -

* Comunicação oral apresentada na Universidade Estadual do Ceará - UECE no dia 13 de abril de 2011 no II Colóquio de Filosofia Antiga e Medieval.

Nenhum comentário: