terça-feira, 18 de novembro de 2008

Filosofia e Literatura

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Poesia e Filosofia:
Forma e Reflexão Simultaneas na Linguagem e no Conhecimento

“Entre o pensamento e a poesia há um parentesco
porque ambos usam o serviço da linguagem e progridem com ela.
Contudo, entre os dois persiste ao mesmo tempo um abismo profundo,
pois moram em cumes separados”

(Martin Heidegger)

Introdução

Estamos acostumados a ver a poesia apenas como uma expressão literária imediata e subjetiva, e a filosofia como algo puramente reflexivo e mais objetivo. É como se dividíssemos emoção e razão relacionando respectivamente com a poesia e a filosofia. Tal divisão é no mínimo precipitada, pois ambas estão intimamente ligadas à atividade reflexiva direta ou indiretamente.

Não pretendo aqui delimitar onde, quando ou porque surgiu uma ou outra. Também não quero traçar o grau de importância de uma ou de outra, apenas ressaltar a relação que há entre ambas.

Podemos até dizer que a poesia é anterior a filosofia nas suas origens gregas, considerando a os Poetas e Rapisodos, porém estes já refletiam sobre as questões que mais tarde viriam a ser chamadas de filosofia. Por isso é mais coerente afirmar que somos herdeiros e contemporâneos de ambas simultaneamente.

Levando em consideração que a reflexão é uma característica fundamental do pensamento filosófico, e que a poesia não está isenta desta, esse trabalho tem por objetivo apontar traços importantes dessa relação.

1. Poesia e Reflexão

A relação das pessoas com a poesia e o poeta não é algo que se dá apenas pela busca de verdades (ou de uma verdade absoluta), mas sim pela imaginação e pela apreensão subjetiva das palavras e sentidos expressados. Não há necessariamente uma articulação metódica de idéias e referências, o que há é uma troca de impressões que podem ser momentâneas ou atemporais. A poesia, independente de sua forma, se dotada de métrica ou rima, se livre, abstrata, surreal, tem como algo substancial as diversas subjetividades, de quem ler e a do poeta, como sendo algo que permite infinitas apreensões de sentido, conteúdo reflexivo, impressão estética e etc.

É por isso que dizemos como o carteiro disse para o poeta , que a poesia não é apenas de quem escreve, mas também de quem a lê. Nessa apropriação da poesia pelo leitor há uma afirmação do si mesmo deste projetada no poema, que deixa de ser uma obra que o artista escreveu e passa a ser a expressão da subjetividade de quem a imaginação fez fluir a reflexão poética.

No poema Tabacaria do Fernando Pessoa, com pseudônimo de Álvaro de Campos, por exemplo, é possível notar o quanto são presentes questões existenciais que podem ser estendidas para qualquer pessoa que se colocar na situação ou reflexão que foi imaginada e descrita pelo poeta:

“(...)
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(...)”
(Fernando Pessoa, Tabacaria.)


Aqui percebemos a afirmação de si mesmo do poeta e ao mesmo tempo podemos nos projetar enquanto subjetividade e projetarmo-nos nas palavras ali escritas atribuindo sentido relativo à nossas experiências existenciais particulares ou coletivas. Ao ler a poesia e refletir sobre a minha vida a partir das palavras e do que apreendi da leitura é a apropriação, propriamente dita, do poema, e uma afirmação de mim mesmo a partir do que foi abstraído e refletido.

Por mais que uma poesia tenha uma forma racional, como no caso de um soneto, o conteúdo não está necessariamente fechado, como uma verdade, mas está sujeito ao olhar de quem o ler.

No Soneto da Lua, de Vinicius de Moraes, fica clara a exemplificação que acima citei, de que mesmo numa poesia dotada de métrica e rima como é o caso do soneto, a reflexão é algo presente de maneira subjetiva. O que não quer dizer que esteja vazio de conteúdo filosófico, no sentido de que é dotado da possibilidade de abstração.

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos languidas, loucas, e sem fim
Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros ?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me pressa
A alma, que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tão pouco
A mulher que anda na rua
Vagabunda, patética e indefesa

(Vinicius de Moraes, Soneto da Lua)

Tanto a poesia livre como a metrificada estão sujeitas aos diversos olhares, do mesmo modo que a filosofia, numa perspectiva diferente. Pois ao longo da história da filosofia é possível perceber as transformações e diferentes interpretações de teorias, tratados e etc.

Poesia e Filosofia são apenas maneiras diferentes de expressão e exercício reflexivo. Em uma sobressai o imaginário, o fantástico e a criação verbal, na outra o entendimento racional e o conhecimento do real. Em ambas temos o conhecimento se auto-construindo e reconstruindo. É a palavra a serviço da linguagem como forma real de conhecimento e vivência inteligível dentro das possibilidades diversas, dialógicas e transitivas.

2. Filosofia e poeticidade

Para falar de poeticidade em filosofia não podemos nos esquecer de comentar o que vem sendo feito historicamente com essa relação. Muitas vezes resume-se a uma racionalização da arte ou o inverso, uma distorção do real. Como se com suas peculiaridades elas existissem apenas uma em detrimento da outra.

Percebemos que há historicamente uma supervalorização da filosofia, como se esta fosse superior hierarquicamente. Várias interpretações de clássicos do pensamento filosófico, como a Republica de Platão, reproduzem essa idéia. E isso é algo tão repetido que acaba sendo um processo natural que muitas vezes passa despercebido. É certo que elas ocupam “espaços” diferentes, pois são construções de conhecimento ou reflexão feitas de maneiras distintas. O que não legitima a idéia de que a filosofia seja superior a poesia ou vise versa.

Entretanto, mesmo nas obras filosóficas onde é possível tirar algo que possa fundamentar essa idéia de hierarquização entre ambas é possível notar certa poeticidade. Como é o caso desse trecho da República de Platão:

“Sócrates: A poesia imitativa produz em nós também o amor, a ira e todas as paixões da alma que têm por objetivo o prazer e a dor, influindo em todas as nossas ações, porque as alimenta e orvalha em vez de dessecá-las; faz-nos mais viciados e infelizes, pelo domínio que dá a estas paixões sobre nossa alma, em vez de mantê-las inteiramente dependentes, o que nos tornaria melhor e mais felizes. Não há aqui uma das formas poéticas tradicionais, mas é notório o teor efervescente e apaixonado do interlocutor, tal como é típico da literatura poética.”
(Platão, A República – Parte I)


É nesse sentido que podemos afirmar o quanto é contraditório tentar determinar um juízo de valoração entre poesia e filosofia, já que elementos de uma se encontra constantemente presente na composição da outra e que ambas podem estar a serviço do conhecimento seja racional, abstrato, intuitivo, indutivo ou mesmo no âmbito popular, no dia-a-dia.


3. Conclusão

Se existe algo que pode ser delimitado aqui é a forma estética particular dos textos de uma e de outra. Levando em consideração os objetivos na criação de cada uma e na motivação para a sua composição.

Poesia e filosofia distinguem-se demasiado nas suas formas, objetivos e perspectivas, mas estão muito próximas no âmbito da linguagem e da troca de conhecimento, cada uma na sua linha de proposição.

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